Páginas

16 outubro 2015

Quem construiu Lençóis, a dos diamantes?

Arte em Pedras de Juvenal Rocha, revestimento da rodoviária de Lençóis


Quem construiu Tebas, a das sete portas? Essa frase do Brecht colou na minha cabeça desde que escutei, ainda na infância. Não lembro se ouvi da boca de um professor de história, literatura, ou se foi das leituras comunistas de casa. O poeta incitava a pensar nos trabalhadores, mas não dizia quem havia carregado as pedras de Tebas, reconstruído Babilônia ou levantado a Muralha da China.

Fico encantada por anos mais tarde ter encontrado parte da resposta. Caminhando pelas ruas do conjunto arquitetônico tombado de Lençóis vemos nas casas, nos muros, nas rodoviárias, nas pracinhas, a assinatura de um pedreiro que aprendeu com o pai a arte de erguer o patrimônio cultural protegido pelo pomposo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.

Juvenal Rocha, filho de Cinésio Rocha, não tem caneta nem papel, mas tem talhadeira e pedra e assina suas obras com seu embrecho delicado de piabinhas pacientemente assentadas, com o coração talhado e sua arte de moldar pedras na mão. É dos filhos mais simples de Lençóis, mora na mesma casa onde sua mãe, Jaci, pariu todos os filhos.

Quando tombou Lençóis o IPHAN devia ser como eu era quando escutei a frase de Brecht, uma criança que não enxergava e nem sabia quem eram os trabalhadores que construíram aquela arquitetura admirada por tantos. Que sorte estar descobrindo tudo isso hoje por conta do IPHAN! Antes tarde do que nunca vale pra todos!

Juvenal Rocha, sua família e seus companheiros construíram Lençóis, a dos garimpeiros, a das lavadeiras, a dos rios e cachoeiras, a da Chapada Diamantina.


17 dezembro 2014

Cuba, o embargo e a chupeta

Lembranças felizes da primeira infância em Cuba. Fotos: Celso Horta


O embargo econômico sofrido por Cuba mudou minha história, por isso me dou ao direito de comemorar hoje, 17 de dezembro de 2014, o anúncio de mudança na postura do governo norte-americano nas relações econômicas e sociais com a ilha e com o povo cubano. O comunicado foi realizado concomitantemente pelos presidentes Barack Obama, nos EUA e Raúl Castro, em Cuba.
Cresci escutando os causos da passagem da minha família pela ilha, no ano de 1984. O carimbo inaugural no meu passaporte deu asas à minha imaginação e encheu de mitos a minha cabeça. Viva Fidel, Viva Che, Viva José Marti! Sempre achei o máximo dizer que estive na ilha proibida no meu primeiro ano de vida e dizer que fomos muito felizes ali.
Mas estamos falando de embargo, então vou copiar um trecho de minha vida, narrado por Frei Betto, em O Paraíso Perdido (1993, p.92), e que toca na minha ferida mais antiga em relação ao capitalismo cruel:

Cuba, junho de 1984 - “Celso Horta e Sérgio Cervantes me aguardam no aeroporto José Martí. Celso, com quem partilhei anos de prisão, encontra-se em Havana desde março, debatendo-se com a falta de Circulo Infantil para a filha, de moradia fixa, de móveis, e com o excesso de burocracia das instituições cubanas. Trabalha no resumo semanal do Granma, edição em português. Mora em Alamar, distante do centro. Ressente a dificuldade  de condução e de achar verduras e legumes. Maria Augusta, a filha de 3 anos, adaptou-se logo e já fala espanhol. Joana aprende a andar. Rosa, a mãe, lamenta que eu não tenha trazido uma chupeta para Joana, que ela tanto deseja.
Não é fácil para quem mora em um país capitalista adaptar-se a um país socialista. Sobretudo se tem princípios e faz questão de não favorecer a sabotagem econômica através do mercado negro e do mercado paralelo. No capitalismo, quem tem dinheiro, prestígio e/ou relações, consegue se virar com relativa facilidade. No socialismo também, mas é no mínimo uma incongruência quando se sonha em construir uma nova sociedade.
No sábado, procuro chupeta para Joana em diversas lojas do centro de Havana. Em vão. Dou-me conta de que a chupeta é tão importante pra ela quanto o cigarro para um inveterado fumante ou a caneta para mim.”

Verduras, legumes, chupetas. Não interessa o que seja, supérfluo ou de primeira necessidade, que mais nenhuma criança cubana – ou não – deixe de ter o que precisa por uma birra do caduco sistema capitalista.

19 dezembro 2013

Chuva faz a sua parte e inunda o sertão. Veremos o que fará o homem...

Passaram-se três anos desde que comecei minha dissertação de mestrado, sobre a tradição irrigante no povoado Mirorós, no sertão da Bahia, estudando o impacto de trinta anos de políticas públicas. Nesse tempo, a falta das chuvas só piorava a situação da população e do meio ambiente. As centenas de milhões de reais em investimentos, o avião contratado pra fazer chover, os mais de cem poços perfurados no local em pouco resultaram. O Rio Verde, coitado, virou pó! Os sertanejos irrigantes já partiam para a velha imigração nordestina. O povoado se esvaía. Foi um período amargo no lugar.



Ismael Nunes Miranda - Nego de Nazió, apontando o fim do Rio Verde, poucos quilômetros a jusante da barragem Mirorós -2011

No dia em que coloquei o último ponto final na dissertação, 17 de dezembro de 2013, um pé d'água daqueles fez escurecer o céu! E a chuva caiu forte, sem respeitar o pouco espaço que deixaram pra ela. A barragem instalada no povoado captou 1,10 milhão de metros cúbicos de água. Pelo menos nos últimos cinco anos, não escutei falar de uma cheia dessas.

Por um momento, me senti contemplada, pensei que talvez São Pedro, já descrente de que eu terminasse o trabalho, tivesse cuspido do céu: "Aleluia! Aleluia!".

Mas sei da minha insignificância, e dela vejo as chuvas sendo "culpadas" pela seca, pela inundação, pelo desastre, pela manifestação. Não são. Nós somos, ignorantes e culpados pela degradação de nossa própria casa. As chuvas são responsáveis pela  pela reprodução vegetal e animal. A chuva nos dá fartura, conforto, refresco, esperança.

Agora, o que faremos com essas novas águas, "1,10 milhão de metros cúbicos" represadas e garantidas para o "uso humano"? Daremos de beber aos animais, ou lavaremos nossa calçada? Teremos crumatá, pirarucu, piranha nos rios, ou compraremos peixe congelado da China? Produziremos arroz, ou lavaremos nosso carro? Deixaremos as mangueiras carregadas ou consumiremos mais sucos de caixinha, comprados de empresas altamente consumidoras de água, que aumentam o número de crianças obesas? Festejaremos o São João com a fartura da produção irrigada ou pagaremos caros ingressos para assistir algum cantor gringo em um espetáculo de luzes e sons que nos obriga a construir mais e mais "Belo Monte"?

Fiquei feliz com a chuva, no meu coração, sempre soube que ela viria e que o Rio Verde, para mim o rio mais franciscano de todos os que nascem na Chapada Diamantina, deveria estar preparado para receber e se apropriar novamente do que lhe foi roubado, o direito a correr. À população de Mirorós, por quem nutro carinho pela acolhida, desejo muita consciência nesse momento próspero. Penso que os rios são como nós, têm sempre uma resistência! Salve o Rio Verde! Salve o Rio Verde! Salve!


Rio Verde, na Fazenda Água Quente, onde a mão do homem não conseguiu enfraquecê-lo. Foto Vinicius Morende, 2008.