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25 dezembro 2012

Meninos que chegam, mães que vão embora

Que mãe não quer ser Dona Canô? Ter seus filhos na alegre natureza da Bahia, vê-los crescer, cantar, lutar, transformar o mundo. Todos fortes, de cabelo ao vento e ganhando o mundo.

Ai Dona Canô, hoje estrela no céu, ilumine as mães de agora. Ensina essa tua consciência, espalhe a tua benção. Sempre será inspiração pra nossa existência, já que a tua está eternizada pelos versos tão lindos de seus filhos.

Os sinos das igrejas da Bahia dobram, de Salvador ao sertão, convocando todos para tua famosa novena. Rezaremos todos, cada um a sua maneira, pela sua passagem, forte e serena, por essa terra abençoada.

E já que chegou a hora de tua partida, nós que ficamos contamos com a força dos filhos que chegam, embalados pelas lindas canções dos teus rebentos.

10 outubro 2012

Zé Dirceu: um vilão para a nossa DEMOcracia

O político José Dirceu povoa a imaginação do povo brasileiro. Algumas, baseadas em fatos midiáticos, concluem a composição de um homem duplo. Velho que já foi jovem, ladrão que pregou honestidade. Condenado pela ditadura e pela democracia. Minha mente acrescenta às coisas da TV alguns fatos de dia a dia, de uma memória que assume esquecimentos e criações. Para mim, ele é pessoa que sempre se envolve, faz, aparece. Pessoa rara. É como o Dirceu do grego, o Forte.

No meu primeiro ano de vida, mudei com pai, mãe e irmã para Cuba, por um período curto, porém definitivo. Quem iria pra esse lugar tão temido? Longe de vovôs e vovós, da família numerosa de tios e primos, vivemos na ilha. Nesse tempo, Dirceu apareceu trazendo notícias do Brasil.

Na infância, na Vila Mariana, no caminho para o colégio eu passava todos os dias em frente ao predinho de esquina onde Dirceu morava. Nessa época, meus pais se relacionavam profissionalmente e fraternamente com o Zé. Frequentemente ele aparecia nas festinhas de aniversário lá de casa, que serviram inúmeras vezes de encontros da esquerda recém espancada e torturada, que no final da década de 80 se libertava a caminho da maturidade.

Eu já havia mudado pros lados do Paraíso, e ele para os da 23 de maio, quando o procurei para fazer o trabalho de português do colegial. Apresentei uma entrevista com Dirceu para as páginas amarelas da minha versão pessoal da revista Veja, e eu e minha colega Bárbara fomos bem mal avaliadas pela professora de português. O conteúdo da entrevista pouco importou, diante da falta de criatividade para os anúncios publicitários.

Página do trabalho da disciplina de Português, 1998

O escritório dele ficava numa casinha na Vila Mariana em uma época em que o bairro era mais simples e as coisas não precisavam ser ostensivas. Acho que nessa época ele já não era casado com a Ângela e não vivia mais com sua filha Joana. Creio que eles se separaram no mesmo período em que meus pais.

Nesse tempo, da minha adolescência, alguma coisa mudou. Meu pai já não trabalhava mais com Dirceu, as festinhas de criança na garagem já não atraíam ex-militantes, então deputados, e de um piscar de olhos aquele homem virou o comandante do País, ao lado do Lula, que da mesma forma cruzou pela minha vida, em Cuba, na primeira, na segunda, na terceira infância, na adolescência.

Há menos tempo, entrei em contato com sua fiel escudeira e secretária de décadas, pedindo uma entrevista para o CQC. Ela foi solícita, como na época do colegial, mas eu mesma não quis continuar a prosa. Pra que é que eu vou jogar o cara na fogueira? Pra mostrar pro diretor que eu tenho meus contatos! Deixa quieto, vou mesmo pra Bahia.

Dirceu faz parte da minha composição racional e pessoal. Bora pro sertão organizar trabalhadores e tentar mudar o sistema usurpador de camponeses? Vamos! Pessoas como pai, mãe, dirceus e luíses fizeram, por que não vou fazer? Bora deixar SP com a burguesia e mudar pra Bahia com um filho no bucho, tentar mudar o mundo? Claro! Pai, mãe, dirceus e luíses fizeram, por que não vou fazer?

Se hoje eu me indigno com a pobreza, com a exploração do trabalhador, com a imprensa falsa, com a televisão que manipula, com a saúde e com a educação que só existem pra quem tem grana, é porque aprendi com esses caras, pai, mãe, dirceus e luíses. Torturados em suas juventudes, física e psicologicamente, são ainda hoje ameaçados pelo poder dominante.

E como me explicou ainda esses dias meu pai, o poder dominante só pode ser um, não há espaço pra dois, e o caminho é na direção do contra-poder. A semente desse contra-poder foi plantada, mas seus plantadores são até hoje condenados. Resta às gerações seguintes cultivar o que conseguiu ser germinado.

Ainda está cedo e a história não está dada. Tenho esperanças de responder ao meu filho sobre quem foi José Dirceu da seguinte maneira: um dos muitos heróis que brotaram no tempo místico que foi a década de 1960, perseguido político, torturado e condenado, mas que como homem forte, nunca desistiu.

09 outubro 2012

Algumas urnas no sertão da Bahia, uma urna na Vila Mariana em São Paulo

Ver o destino da Chapada Diamantina ser decidido por vinte ou mil votos me dá uma vontade inquietante de estar em São Paulo para o fale agora ou cale-se para sempre, que é o segundo turno. Vejo-o como a conquista do divórcio em tempos de casamento arranjado. Estou a ponto de organizar uma vaquinha pra estar presente diante de minha urna abandonada na Vila Mariana, que tanto me estimulou a sair correndo de meu torrão natal e escolher a Bahia pra ser berço do meu futuro.- A Chapada do Pai Inácio
Por aqui, em Irecê, o candidato à reeleição Zé das Virgens, do Partido dos Trabalhadores (PT) não conseguiu o segundo mandato. A prefeitura do maior colégio eleitoral da grande região Chapada Diamantina passa a Luizinho Sobral, do Partido “da vassourinha” Trabalhista Nacional (PTN), junto com a falência de seu solo, a crise da água e promessas de transposição do São Francisco para irrigação e consumo compulsivo de água. - Das Virgens e Sobral
Ainda ao norte do território, em Morro do Chapéu as eleições terminaram com a diferença de 20 votos e a reeleição do atual prefeito, Cleová, do Partido Social Democrático (PSD). Conhecido na oposição como bicheiro caolho, conseguiu entoar o “É cinco, é cinco, é cinquenta e cinco” pra uma família a mais na cidade e manteve-se no cargo. Foram 8.226 confirma, contra 8.206 de Leo Dourado, da coligação Partido Popular – Democratas (PP-DEM).- Cleová caolho
Em Ibipeba só tinha pra um. Com 100% dos votos válidos, o candidato único Israel 11, do PP, levou pra casa a gerência de um município que vive a epidemia da seca e a desertificação, a falência de um projeto caríssimo de irrigação e a migração de sua população. O doutorzinho teve apenas que enfrentar uma campanha cívica pelo voto nulo, sem projeto político ou direcionamento forte, com 11,11% de votos. - Israel 11
Centro turístico de população flutuante, Lençois derrubou o “Marcão é dez, na cabeça e no coração”. “Honesto, justo e verdadeiro”, não conseguiu convencer a população votante que o viu algemado pela Polícia Federal. Entra a boa e prestativa enfermeira Moema, com o 55 do PSD. Na cidade com pouco mais de sete mil eleitores, pouco menos de um mil garantiram a colocação fácil de uma candidata vista como fantoche de velhas oligarquias. - Marcão em Ação da Polícia Federal
O município de Palmeiras enfeitou-se para festejar o prefeito eleito, colocando bandeirolas nas janelas e botando “pra pocar” a população ao som do trio elétrico. Didinho, da mega-coligação PPS-PRB/PP/PDT/PPS/PSB/PV/PSDB/P..., no menor entre os colégios eleitorais da Chapada Diamantina citados no texto, distanciou-se do segundo colocado por mais de 800 votos. - Resultado das eleições na zona eleitoral onde está inserida a Vila Mariana
Não votei nessa eleição. Meu título ainda está em São Paulo, assim como meu vínculo trabalhista, minha família, muitas de minhas raízes. Aqui, meus votos seriam na contramão de todos esses resultados. Algumas de minhas posições não chegariam sequer ao segundo colocado e se juntariam a grupos de 100, 200 pessoas em algumas dessas cidades. Por isso mesmo, por ver como o destino de um povo inteiro pode sim ser decidido por vinte ou mil votos, me volta o desejo de estar no caos que me desencorajou de São Paulo e me mandou pra esse sertão!

28 agosto 2012

Para melhor atendê-lo, o escritório mudou de endereço!

De vez em quando, a nossa vida muda e transforma-se tão fatalmente que é impossível retornar há um quotidiano anterior. Mudanças definitivas acontecem pra quem vai ter um filho, pra quem muda de cidade, pra quem troca o emprego pelo estudo. --
O Serrano está mais perto de casa do que o parque Ibirapuera do apartamento. E agora todo dia posso observar as pedras que denunciam o precioso potencial mineral que transformou toda a Chapada Diamantina numa cobiçada terra de forasteiros. No começo de agosto, do céu dava pra ver o extenso sertão marrom, claro, bege, laranja, escuro. Viemos como as chuvas de maio, que caíram do avião contratado pelo governo para obrigar as nuvens a crescer, forçando-as a lavar o semiárido. Será que esse avião que joga água nas nuvens funciona?Ou seria melhor investir em uma maternidade? Em todo esse sertão, UTI neonatal apenas em Irecê, distante até 400 km de algumas cidades, com estradas de chão e BRs simples. Na casa da frente, mora uma parideira filha de parteira. E mesmo com tantos buracos na estrada, o alimento na feira é fresco, menor e mais corado. Tem ricota sem gordura e leite integral da vaca, além de quem cultive a bactéria do iogurte como ente da família! Afrânio Peixoto, Horácio de Matos, Walfrido Moraes. Nomes de uma terra que passa pelas serras do Sincorá, na cordilheira sertaneja que cruza nossas Minas e Bahia. O sertão ficou verdoso por esses dias. Quanto tempo vai durar? Enquanto isso, um neném cresce na barriga e nos jogamos nas histórias dessa terra bravia. Fotos: Novo escritório e Rosa Meditando, por Joana

20 junho 2012

Bahia

E não é que eu volto a falar disso. É que está passando na televisão um remake. Não é nada disso, é ela de novo, me movendo tempo após tempo. Fazer as malas, levar o quê? Deixar a cidade pra quem a consome e digere diariamente. Enxergar novamente o que apetece aos olhos da cara. Dessa vez, enxergar a três! E quem sabe a sete, a dez, a todos que desejem essa paisagem. Uma grande família onde a natureza reina com bravuras.

18 março 2012

"Rei"tor(to) da USP vira peça de museu - Rodas no Memorial da Resistência



O atual "rei" da USP virou peça de museu. João Grandino Rodas é citado, na expo temporária do Memorial da Resistência, "Lugares da Memória - resistência e repressão em São Paulo".

Obviamente, Rodas está inserido como repressor. Sua participação acontece ao lado de repressores e torturadores, e trata de sua participação no encaminhamento da PM para prender alunos na faculdade de Direito da USP. Uma das razões de receber com louvor o título de "Persona non grata" na faculdade.

Quem puder, vá e assine o livro da exposição. É preciso prestigiar tal fato antes que ele mande prender o pessoal do museu, ou escreva no USP DESTAQUES que isso não aconteceu.

29 fevereiro 2012

Expedição Chapada – O Morro do Chapéu


Arrebol do Morrão, um dos pontos mais altos da Bahia


Zé Capoeira em sua roça de mamona - Povoado Icó - Morro do Chapéu

Por Vinicius Mimo
Chegar ao Morro é sempre muito intenso. Estamos na beira do sertão que se estende muito pra lá do São Francisco, no alto da cordilheira de ouro e diamantes que chega nas Minas Gerais. Inscrições rupestres rodeiam praticamente toda a cidade e a ação do homem deixa a incerteza se um dia elas estiveram onde agora há casas.

Deste dividir tempo e espaço na casa de nossos camaradas daqui resultam grandes aprendizados. Nas pequenas coisas muito mudou desde 2008 até hoje. Basta abrir a porta do quintal e observar a revoada de passarinhos e lagartos e o espanto das galinhas para perceber. E são as pequenas relações em meio às gigantescas formas de tantos bilhões de anos onde busco explicações para entender melhor como andam as coisas.

Na roça, no Velame, na vereda que leva o nome do bandeirante explorador, na Mônica, no Icó, na Chapada Velha, o que o agricultor mais espera é que chova mais um pouco até o final de março. Assim a chance de boa safra vai ser quase garantida. Se isso acontecer, um pouco mais de renda deve elevar o consumo.

Parece que não há grande segredo além do trabalho, dedicação e organização, na maior escala possível. No entanto, alguns atalhos, como a disseminação do serviço de perfuração de poços artesianos preocupam. Ainda que este fosse o principal problema. Engodos transformados em milagres econômicos, como a energia eólica, provocam insanidades. Empresas, políticos e outros interessados conseguem lotear um grande patrimônio natural.

Pelo novo brilho do falso diamante alguns avançam sobre o que antes garantia um abalado equilíbrio. Um espaço que traz um pouco da explicação do que é o homem e as verdadeiras razões que o fazem se mover ao longo do tempo. Após a recente tentativa do próprio governo do estado de extinguir este santuário, registrada por um decreto, o patrimônio resplandece sangrando. Aos olhos da esperteza internacional é uma grande mina.

Surpreendente é a rapidez com que alguns poucos vão definindo funções para um grande grupo, que pouco pode refletir a respeito da decisão.

24 fevereiro 2012

As águas do Rio Verde em Mirorós


Rio Verde transposto para o canal de irrigação. Com o rio seco, os produtores abastecem o canal com poços - solução e contradição

As águas desse rio são públicas, são da nação. Essas águas não têm documentos que garantam a uma empresa ou a um bairro em Irecê, o direito a essa água. Ou a toda Ibipiba, Ibititá ...e tantos outros municípios que hoje já se beneficiam dessa água.
E os que antes beberam dessa água cultivando alimentos para todo esse sertão, hoje se encontram em conflito, sem água nenhuma, lutando para plantar, perdendo animais de corte, vendo a seca exterminar os resquícios da flora e a fauna nativa. Jacaré, tartaruga, cromatá. Arroz vermelho e banana maçã. Das nascentes ao baixio, aqui se plantou a semente da melhor qualidade, que fez germinar nas terras de Irecê o feijão que deu nome à rodovia BA 142.

Promessas, promessas e descrença. Buscar o grito de independência e a solução imediata para esse problema é sim passível de tomar a todos, porque das soluções dadas, nada se resolveu. O poder público construiu a barragem de Mirorós, inundou comunidades, desocupou terras de centenas de famílias, para servir à perenização do Rio Verde, ao abastecimento dos centros urbanos e à modernização da agricultura.
Depois da barragem, o rio que corria por 70km e secava temporariamente por alguns quilômetros, já perto de desaguar no São Francisco, está seco desde o baixio do Mirorós, dois ou três quilômetros abaixo da barragem. A umidade do terreno, o alagadiço, o clima de oásis no sertão, tudo desapareceu, salinizando o solo, destruindo a fertilidade da terra.

A água que antes corria nos terrenos por tapagens coletivas, hoje é paga e é cara. Ainda assim, centenas de produtores seguem abastecendo o nordeste com um dos alimentos mais nutritivos e essenciais da base alimentar brasileira, com a produção de banana de alta qualidade.

A população de Mirorós tem menos direito a água? Se o povo daqui sempre fez dividir o que tinha. E ainda hoje o faz quando envia caminhões e caminhões de alimentos, diariamente, a diversos estados do País. Mas hoje a água vem dos poços, muitos pagos por arranjos de pequenos produtores, que podem ajudar nos períodos de seca extrema, como o que se vive hoje, mas claramente não são a solução.

Ainda há tempo para se reverter esse processo. A água é de direito de todos, é um patrimônio natural deste lugar, preservado durante séculos pela produtiva comunidade local. É preciso salvar o rio, levar ao baixio o que faz desse terreno fértil. Preparar a terra para as enchentes.

22 fevereiro 2012

Expedição Chapada - Memórias da Chapada Velha

Por Joana Latinoamericana


A Santa no poço da panela - Serras de Mirorós

De Mucugê, subimos rumo ao norte da Chapada Diamantina, pra cidade de Morro do Chapéu. Ambientados à vida no interior da Bahia, caímos de cabeça nos Trabalhos de Campo. Nossa equipe de dois conta sempre com apoios técnicos por onde passa nessa área, porque as pessoas aqui estão simplesmente dispostas a ajudar. Na camaradagem, Akira Ribeiro e sua família, abrem portas e janelas, na rua do Fogo, pra nos receber.

Meu Campo de pesquisa fica a oeste do Morro, a aproximados 180 km, em direção ao Rio São Francisco. Posso refazer esse caminho, légua a légua, por muitas e muitas vezes e ainda vou me admirar com cada pedra no caminho. Havia certa apreensão no ar pra chegada à Mirorós. A seca prolongada, os rumores da desativação do projeto de irrigação, o fim dos trabalhos no escritório da Assitência Técnica e Extensão Rural (Ater), me fizeram refletir muito sobre essa chegada, os contratempos do caminho e o tempo que cada ato leva para se realizar.


Rio Verde em fevereiro de 2012, povoado Mirorós - Por Joana Latinoamericana

Avisei da chegada a poucas pessoas de Mirorós, poucos dias antes de ir, reservei o quartinho na Fausta e fomos, carregando uma nuvem densa e preta, com relâmpagos e ventos. Chegamos com a chuva, que foi formando poças, fazendo do poeirão o barreiro, e despertando o rosa da flor do Mandacaru. Êta sertão lindo, bôa Chapada Velha!
Esse nome, Chapada Velha, tem muitos significados possíveis. Minha observação sobre isso é que outro nome não serviria. Esse canto é o que me parece preservar os maiores mistérios, as últimas dicas, sobre a composição da natureza no planeta. Em terreno tão árido, à beira de um dos principais veios de água do continente, a vida do homem da Chapada Velha foi demoradamente transformada ao longo dos últimos séculos, tão mais frenéticos em outras partes do planeta.
A memória do lugar é o tesouro que busco, ao lado de garimpeiros que sonham com diamantes, vaqueiros que caçam rebanhos e roceiros que oram pela chuva pra fazer plantar entre as pedras e o sertão. Aos poucos me percebo revirando um baú infinito de conhecimentos sobre a sobrevivência na terra.
Pra chegar mais fundo, alcançar as memórias mais antigas, aceito a noção de que em determinadas circunstâncias nem todas as funções estão disponíveis, o olfato se confunde, a visão é restrita, o tato fica trêmulo. A memória que se alcança é de velhos. Profundamente inspirada pela literatura científica de Ecléa Bosi, dou continuidade ao recolhimento da história oral, guiada pelas histórias que contam os velhos.
A primeira visita foi na casa de Dona Josefa, ali mesmo no Pulo do Bode, no fim da rua mais comprida de Mirorós. Reli o depoimento e Vinicius fez o registro audiovisual. A caminho dos 102 anos, a centenária escutava impressionada a repetição de suas palavras, que agora pareciam minhas, confirmando a história contada.


Vídeo com Dona Josefa, desculpem o corte no dente...

Depois fui à casa de Ilda, com quem repeti a mesma metodologia. Narrei a ela seu próprio depoimento e entre risadas e lágrimas, a memória foi recontada, reafirmada e corrigida para incluir os seis meses passados da última conversa. Muita memória tem essa moça, aos 68 anos. A chuva da noite e a garoa do dia parecia ter recém acalmado o coração dessa gente, que vê hoje um rio seco, onde antes brotava um mundo.


Dona Ilda

Noutro dia, subimos a serra, atrás das nascentes do velho Luiz da Água Quente. Foi que a cancela estava fechada e fomos mais acima, até o Lameirão. No povoado de casas antigas, caiadas de verde, azul, branco, rosa e terra, sentado embaixo do pé de árvore, observando os mais moços trabalhar, estava Luiz Dourado.
Fomos até uma das casas do povoado, de uma das filhas, e nos ajeitamos para a prosa. Câmera ligada, releitura entoada e – Ô de casa! Chega visita, atrás do cafezinho, iguaria preparada com a água de uma das principais nascentes do Rio Verde. Chega pra dentro o ex-prefeito de Ibipeba, município onde hoje é o Mirorós, e também de Irecê, principal centro econômico e comercial da região. Vendo o carro com placa de São Paulo, se admira com a câmera no tripé e sai logo interrogando quem é que está por detrás dessas direções.


Familia de Luiz Dourado no Lameirão

A visita se demorou um pouco e o tempo roubado nos forçou a ficar para o almoço. A comida da serra, cozida na lenha e cultivada em terras limpas de aditivos químicos e industrializados desperta sentidos muito vivos. Degustamos iguarias atrás de iguarias. Feijão, abobrinha, batata, tomates, bananinha, romã, tudo parecia exótico ao paladar de quem vive na cidade. Visitamos e tomamos as referências geográficas das nascentes, conhecemos os sistemas de distribuição da água no terreno e terminamos o dia no poço da panela, contemplando do alto da serra os picos rochosos que vimos se estender desde o sul da Bahia.

De então seguimos pro Gentio do Ouro, do outro lado do rio, onde ficava o Mirorós de antes. Na Gameleira do Assuará encontramos dona Nina, aos 93 anos, nos esperando ansiosamente, apoiada no alpendre do palacete do início do século passado. Ela viu a sede da cidade mudar-se de Santo Inácio para Gentio do Ouro e o Mirorós mudar pro lado de lá do Rio, até passar a pertencer a Ibipeba, antes dos tempos em que tudo ainda era Xique-xique. Ficamos na ante-sala de dona Nina, onde foram se aboletando outros moradores do povoado, vizinhos, representantes de associações e parentes, curiosos para saber qual era a novidade.


Gameleira do Assuruá

Deixamos as Serras do Assuruá e atravessamos para Santo Inácio, onde almoçamos com um João, que nos contou a história dos garimpeiros, que há séculos se aventuram pelas serras, da Bahia às Minas Gerais. Voltamos por Xique-xique, onde pedimos a benção do São Francisco, da imensidão das águas que cortam o sertão, para conseguirmos seguir com o Campo.


Rio São Francisco em Xique-Xique

15 fevereiro 2012

Expedição Chapada – A chegada e a diversão




Fotos: Flores do Sempre Viva, Vinicius - Centro Mucugê e Garimpo Sempre Viva, Joana

Rodamos de São Paulo a Mucugê e daí pra cima, as conexões foram outras, os olhos passaram a captar horizontes muito diferentes dos que nos costuma oferecer a cidade grande. É preciso respirar muito para trocar os ares do pulmão.

Diante o serro rochoso da Diamantina, a natureza revela de quais grandes falhas a natureza evoluiu e milhares de questões sobre a evolução das espécies na terra parecem aflorar. A vida do homem em cidades de pedras e barro desafia a lógica do concreto e o modo simples do povo conforta das pedras no chão. A existência acalorada busca no inverno das serras o frio de acima de mil metros de altitude em relação ao nível do mar.

A chegada por Mucugê é ideal para quem entende que chegar devagar em um território é se permitir receber e trocar muito, escutar, procurar a história do garimpo no Brasil, sua relação com dezenas de povos do mundo e a vida nas pedras. Para quem viaja, o turismo está bem servido com guias, pousadas, restaurantes e espaços culturais.

O projeto Sempre Viva, no caminho de Lençois e Palmeiras, foi o que escolhemos para conhecer, na ilustre companhia de Guta, Gabriel e Miguel, em férias na Bahia. No Poço Azul, flutuamos sobre as águas cristalinas que conservaram os ossos de uma preguiça gigante, que presa no fundo de uma caverna, por ali ficara para se preservar.

Hospedados na Pé de Serra, que aproveita os contornos das pedras em sua arquitetura, a sensação de habitar as casas de antes, com as tecnologias de hoje nos fazem viajar longe sobre a evolução de costumes e a valoração de determinados consumos.
Dali, seguimos em família para o Vale do Capão, pela estrada que passa pelo povoado da Guiné, que tem em suas beiradas as escarpas do Espinhaço e a mata da caatinga. As visitas ficaram, e partimos para nossos focos, nossos campos. Morro do Chapéu e Mirorós, Chapada Norte e Chapada Velha.


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30 janeiro 2012

Expedição Chapada – Quarto dia de estrada – Subindo aos 1500 metros de altitude



Dez dias de mecânica e, enfim, a Eta ficou no ponto pra seguir viagem. Pegamos o carro no sábado a tarde e pra testar o motor novo, descemos até Prado e seguimos em direção à Praia da Paixão, pela estrada litorânea. Como o único pouso do lugar era $$, voltamos à Cumuru, pra pousada da Silvana, onde o rango e a cama são garantidos e acessíveis. A carta zero, O Bobo, colocou uma ousadia de humor na viagem, a liberdade para acreditar, depois de muitos trancos, que as coisas vão dar certo.

Entre o céu e o fim da ribanceira, o bobo segue de olhos fechados e como se flutuasse, caminha. O banho de mar limpou a tensão dos últimos dias e nos preparamos para o domingo no carro. Deixamos a cama à 5h30 do domingo, com rara disposição, de quem está louco para se mexer depois de um tempo amarrado. A ideia era chegar longe, 754 km, até o Parque Nacional da Chapada Diamantina. Uma hora depois entramos na estrada. Retomamos a BR 101 por mais alguns quilômetros, seguindo as placas para o Monte Pascoal, Caraíva, Espelho, Trancoso, Porto Seguro, Anagé, passamos a ponte do Rio Jequitinhonha e quebramos para o interior a noroeste, rumo ao Itororó.

Demorou pra deixamos o deserto verde de Eucaliptos, que se estende do Espírito Santo ao sul da Bahia, para o gado reassumir longos pastos. Subimos a serra e em Tanhaçu, enfim, avistamos a Chapada e o café. O sol foi aquecendo nossos espíritos e as serras se aproximaram, até que paramos entre suas pedras, em Mucugê, ainda de dia, doze horas após a partida. O pouso certo, na Pousada Pé de Serra, é casa de portas e janelas abertas, lençóis frescos e aquele desjejum, com tapioca de fogão à lenha, suco de cacau e um cafezinho preto pra despertar bem, pra despertar na Chapada!



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25 janeiro 2012

Expedição Chapada - Expulsos da estrada, enviados para o Paraíso - Cumuruxatiba


Por Joana Latinoamericana

O diagnóstico do mecânico foi cruel, muitos reais e já se vão oito dias para recuperar o estrago no motor. Difícil manter a calma, mas tem outro jeito? A seguradora queria levar a gente de volta pra São Paulo, mas a gente negociou uma carona até Cumuruxatiba. E por lá ficou, muito bem, obrigada! Agora, de volta a Itamaraju, estamos no aguardo dos últimos parafusos para partir.

Queria postar fotos e vídeos, mas a net daqui não permite muitas peripércias, isso fica pra mais tarde! Por enquanto, tem uma pitadinha no facebook, que carrega mais fácil.

De Cumuruxatiba - As Marés

O jogo aberto sob a mesa avalia. O desgaste e a aceleração de saída levaram ao instante da exaustão. Apesar disso, há que se celebrar, dançando pela chuva, por mais que o lado bom seja bom de mais pra ser e menos aparente do que se vê.

A viagem continua sem ter estabelecida seu ponto final. Revista, reorganizada e vivida de forma surpreendente. Chacoalhada por um relâmpigo que passou por nós, desligando motores e desmagnetizando telefones.

Deixamos o carro no planalto de Itamaraju e chegamos à Cumuruxatiba. Puxados por mares, verdes mares, onde refletem planetas nas noites de estrelas, no sobe e desce profundo das marés.

No Rio do Peixe Pequeno encontramos Silvana e Osiris, com sua cabanas cercadas por jardins floridos, na beira-mar,onde se pode receber uma lagosta ou um peixe fresco.

Nos jogamos, deixando os pingos da chuva molhar, sem ter que pensar se deve-se soltar mãos ou pés primeiro.

Pedalando, encontramos Paulo, na entrada para as Japaras, com água gelada e indicação de boa praia. Nas areias da Japara Mirim, temperadas por falésias e pelo rio Dois Irmãos, nascem tartarugas ajudadas por boas mãos de meninos e meninas.

Na volta, na maré alta, pela areia só empurrando a magrela. Compensam os seis quilômetros a menos que pela estrada de chão.

Chegando pelas praias, antes do centro, na Bica, tem o Gato que Ri e sua marca, o Boni. José Bonifácio da Silva. Cara de índio, mão de metalúrgico, companheiro de Lula. Na mesa de seu bar a conversa começa com galo cubano e Luis Carlos Prestes, e termina em projeto político, a redenção à Cumuru e a uma outra vida vivida. Mar é mar.

E na volta, na estrada escura, encontrar o Seo Antônio, com lanterna em mãos, iluminando a estrada e falando de seu amor de filho. Quando diz a ela que é amor maior, diz amo mamãe.

Chegamos sem querer, partimos sem querer, voltamos pra estrada, por outros caminhos, mas com destino à Chapada.

Mais Fotos

18 janeiro 2012

Expedição Chapada - Segundo dia de estrada - Ubatuba - Guarapari


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Saímos da Praia Grande de Ubatuba às 7h da manhã, com a previsão de rodarmos 850 km, até Vitória, no Espirito Santo. Muitas curvas, muitos carros, muita gente indo e vindo. A estrada verde de mata atlântica está colorida com os Ipês Rosa, carregados de flores. O mar se espalha entre vãos e a brisa convidava a vários mergulhos, nas centenas de praias que cruzamos.
De São Paulo ao Rio de Janeiro, o visual da Rio-Santos é o que compensa o tráfego pesado e a média de 50 km por hora.
Chegamos no Rio de Janeiro lá pelo meio dia, pegamos um trânsito daqueles de cidade grande e uma hora e meia depois conseguimos deixar São Gonçalo e a ponte Rio Niterói pra trás e chegar na BR 101, que cruza todo o litoral brasileiro.
Nesse trecho conseguimos desenvolver uma velocidade melhor, mas muito caminhão está deixando de ir pela Rio-Bahia, por conta da implantação de pedágios e a pista única e a sinuosidade da estrada te deixam apreciar a paisagem de interior, com brisa de mar.
Essa é uma das estradas mais perigosas por onde já trafeguei. Os motoristas fazem ultrapassagens alucinantes em curvas, tirando muitos carros da pista e empurrando-os pros acostamentos. Vimos uns três carros destruídos e um capotamento fresquinho e fomos de boa, porque o que nos interessa é chegar!
O Sol ainda estava alto, mas decidimos parar antes de Vitória, em Guarapari, com a esperança de encontrar pouso e alimentação mais em conta, sem ter que passear por cidade grande atrás de hotel. Acertamos. Ficamos na pousada "Mar e Lago", onde o Jorge nos recebeu e fez um descontão.
Depois de bater uma tradicional moqueca, cozinhada em uma panela das “paneleiras de goiabeiras”, patrimônio cultural imaterial brasileiro, caminhamos pela orla e voltamos pra descansar.
A diária na "Mar e Lago", na praia de Meaípe, saiu por R$ 80,00. O banheiro ótimo, o quarto limpo e a cama boa, o café da manhã caprichado, e a prosa com o Jorge, nativo de Guarapari, compensaram a labuta do estradão percorrido. E a viagem continua!

15 janeiro 2012

Expedição Chapada - 1 dia de estrada - São Paulo - Boiçucanga - Ubatuba


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- 279 km - 5h na estrada
(trânsito em Maresias, às 20h30 e em Caraguá, às 22h)

A cachacinha de sexta-feira, com Sarah, Ripas e amigos não deixou a gente sair muito cedo. Então, nosso primeiro dia de estrada, sábado, 14 de janeiro, foi um dia para terminar de colocar as coisas no lugar. Desmontar a bike, comprar pneus de terra, arrumar as maletas na caçamba.

Levamos nossas plantas para Boiçucanga, plantamos o pé de romã, a muda de canela, os temperos e as flores no terreno de Boi, batemos uma ducha com a abençoada água da cachoeira, almoçamos com Dona Rosa e seguimos para Ubatuba.

Decidimos passar o domingo em Uba, na companhia de Luis e Yara, para evitar o trânsito de domingão em alta temporada e pular as sete ondinhas pra abrir nossos caminhos pra esse 2012. Amanhã tem mais uns 700 km de estrada, rumo ao trabalho de campo, rumo à Chapada Diamantina!